Harmonia pensada por Deus
É fato que a graça de Deus toca a alma humana a propósito
deste ou daquele aspecto que o mundo contemporâneo herdou do passado, de modo a
nos dar a impressão de que o objeto contemplado se acha todo impregnado da
mesma graça. Na verdade, o que admiramos será uma coisa natural, repassada de
beleza e proporção, porém mero instrumento através do qual o dom divino exerce
sua ação benfazeja sobre nosso espírito.
Assim nos aparecem, por exemplo, os monumentos europeus,
muitos deles construídos na plena era do amor de Deus, isto é, no apogeu da
Idade Média, quando se delineou o sorriso — prenhe de afabilidade, de majestade
e de uma discreta melancolia — do gótico.
Catedral de Bourges – França |
Tal impressão se faz notar, particularmente, quando
admiramos uma ogiva: esta, pelo mencionado influxo da graça que nos move a
admirá-la, desperta em nós bons sentimentos em relação ao Primeiro Mandamento,
eleva nossas cogitações para as maravilhas divinas, de um lado; enquanto, de
outro, produz sobre o temperamento do homem uma forma de quietude equilibrada,
uma ordenação interior, um certo bem-estar e deleite de espírito sem os quais o
existir quotidiano se lhe torna árduo ao extremo. Através desse deleite, desse
equilíbrio, ele encontra a paz.
Catedral de Dijon, França |
Mais ainda. A ogiva, conferindo-lhe essa tranquilidade de
alma, amaina por isso mil ansiedades e ardências, e o convida a uma necessária
e comedida ascese. Dir-se-ia ser a ogiva uma espécie de gráfico da ordem do
universo, que orienta o homem para essa valiosa disposição ascética, não
rebarbativa, mas florida, mais espiritual que física. Porque o gótico empenha-se
em manifestar mil doçuras e mil flores, as quais são de molde a oferecer ao
homem alegrias e satisfações que desarmam muitas das objeções da anti-ascese.
Com essa suavidade, a ogiva acerta, ajeita e tranquiliza o
que houver de desarranjado no coração humano. Filha de uma arte inspirada pela
graça divina, ela acaba exprimindo uma harmonia mais pensada por Deus do que
pelos homens. Por isso é de uma extraordinária beleza!
Catedral de Amiens, França |
(Extraído de conferência em 11/11/1988)
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