• domingo, 6 de novembro de 2011

    Firenze

    Enquanto Veneza desperta maravilhamento pelo extraordinário colorido que lhe vem da presença da água e do esplendor de seus palácios, Florença representa a arte racionalizada, dando ao homem supercivilizado todos os prazeres que a razão pode conceber. Não é, pois, uma arte feita sobretudo de coloridos, nem principalmente de poesias, mas de cálculos técnicos, de desenho, perfeição e harmonia, levados ao supra-sumo capaz de ser alcançado pelo espírito humano.
    Séria, amiga de considerar nas coisas o aspecto que resulta do silogismo e do raciocínio, a alma florentina engendrou construções e monumentos que primam pelas proporções e perspectivas sumamente bem calculadas.
    Por exemplo, o famoso Palácio da Senhoria de Florença, durante muito tempo a sede de um governo que ocupou relevante lugar na cultura e pensamento humanos.
    No seu exterior, nenhum colorido a não ser o dos tijolos, de agradável aparência. Uma linda torre que se eleva cercada de ameias; algumas janelas abertas a esmo, outras que compõem espécies de ogivas. Embaixo, nos dois ângulos do palácio, aparecem ornatos que deixam ver sua harmonia total: são estátuas de mármore branco, bem alvo, contrastante de maneira graciosa com a cor avermelhada dos tijolos.
    É um edifício extraordinário, de rara beleza enquanto sério e altivo. Se tomarmos apenas o modo de a torre se erguer altaneira no monumento, consideramo-lo magnífico, seguiu de si e lógico em tudo. Se olharmos para a construção no seu conjunto, ela nos agrada enormemente pela boa e bela ordenação. E oque nela há de por de mais severo, é atenuado pela doçura ao mesmo tempo hierática e agradável dos seus três arcos, que compõem o “decor” da praça onde se encontra esse edifício.
    Poderá talvez não se comparar às maravilhosas e policromadas fachadas de Veneza, mas é, ele também, um palácio célebre e admirado em todo o mundo. Ao contemplá-lo, enriquecemos nossas almas com um precioso e incomparável depósito de arte.
    *
    A beleza das proporções e harmonias de Florença se completa com o atrativo do rio Amo e a popular vitalidade da Ponte Vecchio.
    O rio, em cujas margens se deram fatos históricos extraordinários, chama a atenção pela cor de suas lindas águas, de um verde dado a certo tipo de musgo. Tem-se a impressão de que um cristal colorido tomou-se líquido e passou a correr lentamente através da cidade...
    Já a Ponte Vecchio nos reporta aos longínquos tempos medievais. Surgiu ele das necessidades impostas pelas condições militares daquela época, quando uma cidade tinha de se fortificar e erguer muralhas, para fazer frente ao assalto de cobiçosos adversários. Nos períodos de guerra e de cercos, a população que vivia ao redor dessas proteções refugiava-se no interior da cidade, levando consigo o que podia de seus pertences.
    Ora, na falta de espaço, os florentinos não encontraram melhor solução do que construir uma espécie de casas sobre pontes, as quais, com o passar dos séculos, tornaram-se moradias definitivas, hoje um dos pitorescos e encantadores aspectos de Florença. Ali se mistura um comércio riquíssimo e magnífico de antiquários, com a vida alegre e ruidosa do “populino”, com as casas onde as escadas rangem, as matronas se ameaçam com rolos de amassar, e um velhinho esclerosado sobe penosamente alguns degraus apodrecidos, levando o jornal debaixo do braço, indo curtir sua pobreza e seu isolamento junto a um gato  no quarto que ocupa lá no alto... Il Ponte Vecchio!
    A simplicidade e beleza das formas voltam às nossas considerações, quando admiramos o Duomo, ou seja, a Catedral.
    Toda ela é feita de mármore branco, verde e avermelhado. Florença, mais importante e mais rica que muitas cidades italianas, ousou fazer para si uma catedral sem vistosos adornos. Porque, para os florentinos, mosaicos e cores bonitas são enfeites fáceis para imaginações débeis... Ali, não: eis te uma proporio perfeita entre a torre, o corpo da igreja, as naves laterais e a abóbada encimada por pequena cúpula. Tudo muito bem calculado, como são bem calculadas as portas, os vitrais, as colunatas e a grande rosácea.
    A abóbada se fecha belamente em cima. A torre, à medida que se eleva, vai se afinando de modo discreto e bonito, fazendo brilhar à luz do sul a sua vestidura de mármore, magnificamente envergada.
    E a construção estética por eles reputada irretocável. Então, a reflexão, o equilíbrio, a profundidade como que zombam do ornato, do charme, da graça, e possuem uma inegável beleza, resistente à metralhagem dos olhares analíticos que procurem nela algum defeito. A Catedral parece dizer: “Eis-me aqui, sem adornos nem maquiagem. Eu sou eu. E vejam como sou linda!”
    Tudo isso faz lembrar um fait divers que, narram as crônicas, aconteceu na antiga Grécia. Durante um concurso de esculturas, artistas de diversas nações expuseram suas obras. Após as eliminatórias, restaram para decidir o prêmio as figuras esculpidas por um persa e um grego. O primeiro havia representado uma mulher trajada de forma extremamente rica, compensando a menor beleza dos traços fisionômicos. O segundo, pelo contrário, cinzelou uma grega de linhas simples e formosas, vestindo apenas uma túnica branca.
    O júri escolheu a grega. O persa protestou:
    — Mas, a minha, está tão mais bem vestida!
    Resposta incontestável:
    — Tu a fizeste rica, porque não a soubeste fazer bela...

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