• segunda-feira, 26 de março de 2012

    Granada: religiosa e mística


    “Dê-lhe uma esmola, mulher, porque não há nada pior nesta vida do que ser cego em Granada.” Não se enganou o Rei árabe ao dizer estas palavras à sua esposa, quando um mendigo cego pediu-lhe uma esmola...

    Situada na Andaluzia, aos pés da majestosa Sierra Nevada, banhada pelos rios Darro e Genil, que fertilizam sua famosa vega, a uns 700 metros de altitude, ergue-se altaneira, bela e desafiando os séculos, a mítica cidade de Granada. Foi ela cantada por poetas e escritores, visitantes e peregrinos, especialmente pelos românticos do século XIX, os quais, por assim dizer, sucumbiram ao charme incomparável desta formosa cidade.

    Se adentrarmos um pouco pelas suas ruas de traçados caprichosos, subirmos pelas encostas pedregosas do Albaicín, visitarmos seus célebres cármenes, percorrermos suas praças e plazoletas e, sobretudo, entrarmos em suas belíssimas igrejas, vamos nos deparar com uma realidade muito mais ampla e elevada, pois toca no próprio Deus.

    É uma Granada religiosa, quase diríamos mística e maravilhosa, que nos atrai, mais do que as centenárias muralhas ou a grandeza humana do Alhambra.

    Evangelizada por São Cecílio

    Essa Granada cuja origem se perde na noite dos tempos é a Granada da fé, visitada por inúmeros santos, alicerçada sobre a memória milenar do Apóstolo São Tiago, que por ali andou. Segundo narra piedosa tradição, cidade marcada pelas aparições da Santíssima Mãe de Deus, a qual, quando ainda vivia nesta Terra, apareceu ao Apóstolo da Espanha no Sacromonte; e pela presença sempre atual de São Cecílio, “Varão Apostólico”, que foi sagrado bispo por São Pedro, juntamente com outros companheiros de São Tiago, e com eles veio no ano 44 da era Cristã para Ilíberis — como se chamava Granada na época — onde ele recebeu a graça do martírio.

    Como prêmio sobrenatural pelo sangue derramado neste lugar, a região tornou-se fervorosamente cristã.

    Campo apostólico de outros grandes Santos

    São João de Deus
    Já no século XVI vamos encontrar percorrendo as praças, ruas e ruelas de Granada, rezando em suas igrejas, um homem de pequena altura, trajando um pobre hábito marrom de tosca lã, mas de um olhar de fogo! “Metade de monge”, assim o chamava afetuosamente Santa Teresa de Jesus, em razão de sua baixa estatura. Era ele São João da Cruz, o maior místico do Ocidente. Foi neste antigo Reino de Granada que ele, fugindo do cárcere da Inquisição de Toledo (a Reforma carmelitana ainda não tinha sido bem compreendida em alguns ambientes eclesiásticos), compôs um de seus mais belos poemas e fundou várias casas, entre as quais o Colégio de Baeza.

    Esta privilegiada cidade serviu de púlpito para São João de Ávila. E foi nela igualmente que, ouvindo as palavras cheias de unção sagrada deste insigne pregador, um aventureiro português, também chamado João, teve sua alma profundamente tocada pela graça divina e decidiu abraçar a Cruz e trilhar a via da santidade. Sim, foi esta mesma cidade que viu nascer a monumental obra de São João de Deus, a Ordem dos Irmãos Hospitalares. O perfume espiritual deste grande santo ainda perdura nos lugares que freqüentou. Depois de fugir de casa aos 8 anos, pastorear nos campos de Oropesa, perto de Toledo, ter sido soldado do Imperador Carlos V e combater na Alemanha para impedir a invasão turca, vem a Granada onde, convertendo-se, passa de herói de campo de batalha a herói no campo bem mais amplo da caridade.

    Ao longo dos séculos, muitas outras almas santas, viveram ou passaram por esta cidade, irradiando suas graças e benefícios. Entre estas, o célebre capuchinho Frei Leopoldo, que até poucas décadas atrás percorria as ruas pedindo esmola para os pobres. Sua fama de santidade, bem como os inúmeros milagres que, segundo se crê, foram realizados por sua intercessão, transformaram seu túmulo num santuário, sua cela num oratório e sua pobre túnica num objeto de veneração ante o qual não poucos ricos deste mundo vão se inclinar...

    Seria longo enumerar todos os lindíssimos conventos de monjas de clausura — alguns deles verdadeiros palácios, doados às diversas Ordens religiosas contemplativas — dispersos neste belo emaranhado de ruas que constitui Granada.

    Em muitos deles o Santíssimo Sacramento permanece exposto à adoração durante a maior parte do dia; em alguns, dia e noite, como no das Capuchinhas Recoletas de Santo Antão, em pleno centro, e no das Escravas do Santíssimo Sacramento e de Maria Imaculada.

    Esplendores da Semana Santa

    O espanhol talvez seja o povo da Europa que mais compreendeu a grandeza do sofrimento de nosso Divino Redentor. A história do país ajudou a criar condições para esta aceitação resignada e alegre da dor.

    Desde os mais remotos tempos, travou ele inúmeras lutas, derramou muito sangue, passou por grandes tragédias. Certamente, essa multissecular conaturalidade com a dor fez com que esse povo se sentisse mais unido a Nosso Senhor em sua Paixão e Morte do que os demais povos da Europa.

    Quem sabe seja esta uma das razões pelas quais, durante a Semana Santa, a Espanha se reveste de um colorido especial? Não há região desta nobre nação que não se traje de um esplendor austero para acompanhar o Senhor e sua Mãe Dolorosa no Caminho da Cruz. São multidões que tomam as ruas para seguir Jesus com sua Cruz às costas.

    Mas é certamente na Andaluzia que a Semana Santa tem um lugar especial no coração de cada habitante. Em Granada, situada no centro da Andaluzia Oriental, não podia ser diferente. Há mais de 60 confrarias, que saem com seus passos. São grandes andores portando em procissão uma imagem de Cristo, ou de Nossa Senhora, ou mesmo um grupo de imagens representando alguma cena da Paixão. Por exemplo, o Senhor da Maior Dor, a Santa Maria de la Soledad (da Solidão) e tantos outros Cristos e Dolorosas (imagens de Nossa Senhora das Dores).

    Regorgitando de flores, sedas, veludos, ouro, prata, círios e incenso, os passos percorrem as muitas ruas e ruelas, atraindo a ternura e a compaixão dos milhares de fiéis que, por várias horas, acompanham seu lento caminhar na Quinta-Feira e na Sexta-Feira Santas. Espetáculo de oração e de paixão do qual não se consegue participar sem se deixar contagiar pela emoção religiosa da grandiosidade da Semana Santa.

    A Padroeira

    Virgem das Angústias - Granada
    Contudo, é para comemorar a festa de sua Padroeira, a Virgem das Angústias, que Granada se reveste de suas melhores galas. Trata-se de uma imagem do século XVIII, esculpida por anjos, segundo consta, e cuja devoção penetrou a fundo no coração do povo granadino.

    Os Evangelhos nos ensinam que, antes de fazer algum milagre, Nosso Senhor exigia a fé: “Tua fé te curou”— “Tua fé te salvou”. O que nos mostra que, quando temos fé, o Céu fica mais perto da Terra, o relacionamento entre o natural e o sobrenatural torna-se mais fluido e contínuo.

    No tempo em que ocorreu o milagre da aparição de Nossa Senhora das Angústias havia, sem sombra de dúvidas, uma fé ardente. Conforme as crônicas da época, a imagem foi trazida por anjos com formas humanas. Granada abriu-lhe a alma e deu-se com amor à Padroeira. Não há casa, mesmo muito pobre, onde não haja um quadro, uma escultura, uma foto da Virgem das Angústias. Todos os vilarejos desse antigo Reino de Granada ostentam uma veneração amorosa à sua Padroeira.

    Em 15 de setembro, não só a população de Granada, mas também as das cidades e vilarejos próximos, vêm à sua Basílica fazer uma oferenda floral a Maria. Grupos, comunidades, indivíduos, não existe granadino que não traga sua oferta, seu pequeno dom à Padroeira, desde preciosas rosas até humildes margaridas ou violetas; todo mundo é generoso para com Nossa Senhora.

    Porém, grande festa mesmo é a do último domingo de setembro, quando a imagem da Santíssima Virgem sai às ruas para dirigir-se à Catedral. Por assim dizer, não há quem não acompanhe essa procissão. Descalços e com velas na mão, homens e mulheres seguem piedosamente seu percurso. O Arcebispo de Granada, com todo o cabido, as autoridades civis e militares, e as diversas corporações, inclusive as mais humildes, têm como ponto de honra seguir atrás da imagem, cujo andor é carregado por homens de todas as idades e condições.

    Um foco de amor e beleza

    Alhambra- Granada
    É por estas razões que, apesar de muitas aparências contrárias, Granada é um dos centros mais religiosos e fervorosos da Andaluzia.

    A tradição religiosa, a ação de presença e irradiação sobrenatural de inumeráveis santos e pessoas virtuosas, aliadas a uma história de lutas, tragédias e, sobretudo, do orvalho divino da graça santificante, forjaram este amor a Nosso Senhor, a sua Mãe Santíssima e à Santa Igreja. E, como fruto secundário, produziu esta maravilha de beleza, que atrai tantos e tantos peregrinos e visitantes. 

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