O homem medieval era ansioso, sôfrego de maravilhoso;
seu espírito voltava-se continuamente para o maravilhoso, como toda
pessoa que crê em Deus.
Aquele que acredita em Deus e tende para Ele, que é o
Maravilhoso, o Perfeito, ama as coisas na medida em que elas exprimem
o Criador. E quanto mais elas são excelentes e admiráveis, tanto
mais espelham a Deus.
É concebível que nestas condições o espírito
medieval tenha sido ansioso para representar o maravilhoso em tudo.
Um exemplo foi o que ocorreu no século XV, na cidade de Avignon.
Todos sabem que a Santa Sé tinha o poder temporal sobre
um enclave no território francês, que era o condado de Avignon,
onde moraram vários Papas franceses, que não deixaram na História
uma memória particularmente esplêndida, a não ser um deles que, se
não me engano, morreu bem-aventurado1.
Nesse enclave produziu-se, no século XV, um milagre. Em
si o milagre é uma coisa maravilhosa.
Recentemente li o caso admirável de uma pessoa que
viveu durante quinze anos engessada; parece-me que todo o seu corpo
estava metido dentro do gesso. Esteve duas vezes em Lourdes para
pedir a cura, mas não a conseguiu. Foi uma terceira vez; entretanto
ela estava tão coberta de gesso que não podiam mais colocar água
sobre seu corpo. Então, para que se beneficiasse de algum modo dos
efeitos milagrosos da água, foi injetada em suas veias água de
Lourdes.
Pois ela curou-se instantaneamente. E o mais
extraordinário é que, tendo sido retirado o gesso, dentro do qual
passara quinze anos, essa senhora começou a andar. O que de si é
uma coisa absolutamente inconcebível.
O milagre foi atestado, provado, porque ela se submetera
a operações. De si, o fato é maravilhoso, no sentido de que ele
representa uma manifestação da onipotência de Deus e que causa
maravilha. Não é um fato artisticamente maravilhoso; ele não tem
um pulchrum debaixo deste ponto de vista.
Recordaremos agora um milagre que tem um grande pulchrum
artístico e veremos como Deus Nosso Senhor, na sua condescendência,
satisfazia os anseios de alma do homem medieval. Quer dizer, Ele
manifestava sua onipotência — como no milagre de Lourdes —, mas
de um modo muito bonito, artístico.
Ao atender também ao aspecto artístico, Deus
satisfazia a sede de maravilhoso, da qual Ele mesmo era o Autor no
espírito do homem medieval.
Passo a ler a narração, extraída da “Vida dos
Santos”, Bonne Presse, Paris:
A Confraria dos Penitentes Cinzas de Avignon, que
teve por fundador Luís VIII, pai de São Luís, possui sua sede na
capela da Santa Cruz, chamada de Pénitents Gris. O Santíssimo
Sacramento está aí exposto – com certeza já não é mais assim;
até há pouco tempo era – noite e dia, desde 14 de setembro de
1226.
Isto já é uma verdadeira maravilha. Há quase 750 anos
que o Santíssimo Sacramento não saiu da capela desse lugar2. Sendo
que naquele tempo a exposição permanente do Santíssimo Sacramento
não era hábito na Igreja.
A cidade de Avignon está situada a algumas centenas de
metros da confluência dos rios Ródano e Durence, e atravessada por
um de seus confluentes, o Sorgue. Em 1433, as chuvas torrenciais
fizeram transbordar os três rios que inundaram as partes baixas à
margem do Sorgue. A inundação tomou tais proporções durante a
noite que, na manhã seguinte, os superiores da Ordem, temendo que a
água atingisse o trono onde estava exposto o Santíssimo Sacramento,
tomaram uma canoa e foram até a capela. Qual não foi a sua surpresa
quando, depois de aberta a porta, constataram que as águas, à
semelhança das do Mar Vermelho e do Jordão, se mantinham à direita
e à esquerda, elevadas como grandes paredes, deixando absolutamente
livre e seca a passagem que conduzia ao altar.
Podemos imaginar que aspecto lindo o de uma capela cujas
paredes eram feitas de água, mas nenhuma gota caía. O sulco por
onde os religiosos deveriam passar estava completamente seco. E no
fundo aquela majestade misteriosa, adorável, mas quão real, do
Santíssimo Sacramento exposto.
Gostamos de supor — e tudo leva a crer que assim o foi
— que esses bons religiosos, depois do espanto, fizeram profunda
genuflexão e adoraram o Sacramento Santíssimo, em homenagem a Quem
o milagre estupendo se realizava.
O prodígio lhes pareceu ainda maior quando, chegados ao
altar que fica ao nível da capela sem degraus, viram em volta tudo
igualmente seco. As águas se levantavam ao longo das paredes como
verdadeiras tapeçarias, formando arcobotantes ao alto, como uma
espécie de teto.
Que maravilha! Como Deus quis glorificar o Santíssimo
Sacramento, mas atendendo ao movimento de alma do homem que vê no
belo um reflexo do Altíssimo. Deus presente, mas inteiramente
oculto, no Santíssimo Sacramento, e agindo de um modo sensível,
manifestando-Se por semelhança, precisamente nas águas que subiam e
davam certo vestígio do esplêndido e da beleza d’Ele.
Assim diz o antigo relato conservado nos arquivos da
confraria.
Não é, portanto, uma lenda que se transmitiu de
séculos em séculos, mas é um relato conservado nos arquivos da
própria confraria.
Os dois frades, depois de terem adorado o Autor desse
prodígio, se apressaram a comunicá-lo aos outros confrades. Vieram
doze. E todos juntos foram chamar quatro frades menores da Ordem de
São Francisco, dos quais três eram doutores em Teologia. A água se
mantinha no meio do banco que fica ao longo do átrio da capela, de
maneira a deixar uma parte inteiramente seca.
Para comemorar o milagre, celebra-se com solenidade,
todos os anos, a festa em 30 de novembro, dia de Santo André. Pela
manhã, todos os membros da confraria comungam, percorrendo de
joelhos, até a mesa da comunhão, o caminho sagrado, conservado
milagrosamente pelas águas. Às vésperas, o pregador relembra o
milagre, e o cântico “Cantemus Dominum”, que foi entoado por
Moisés depois da passagem do Mar Vermelho, precede a adoração e a
bênção do Santíssimo.
Durante mais de quinhentos anos se conservou férvida e
ardorosa a lembrança desse milagre. Quanta beleza existe no fato de
que, em todo dia 30 de novembro, uma confraria — cujos membros,
pelo menos em parte, presumivelmente descendem daqueles que viram o
milagre —, formando uma longa procissão acompanhada pelo povo,
entram naquela igreja para celebrar essa maravilha!
Podemos imaginar com que devoção eles adentram na
capela, adoram o Santíssimo Sacramento e entoam o cântico de
Moisés, lembrando que Deus fez em Avignon aquilo que realizou no Rio
Jordão e no Mar Vermelho. São verdadeiras maravilhas de Deus.
Qual é a beleza especial que apresenta a continuidade
dessa tradição? É a pulcritude da lição que nos dá, pois os
benefícios de Deus devem ser lembrados. Nós não podemos deixar de
agradecê-los sempre. Como através das gerações, durante cinco
séculos, eles se lembraram disso, com a Fé e a gratidão que se
transmitiram. E o que dá muito mais calor à comemoração é a
tradição.
Imaginemos que fôssemos fazer agora uma procissão numa
igreja para adorar o Santíssimo Sacramento, a fim de comemorar e
ilustrar o que se passou em Avignon. Seria com muito menos vida do
que o que fazem em Avignon, porque aquele é o lugar onde o milagre
ocorreu, e onde durante quinhentos anos, ininterruptamente, o milagre
vem sendo glorificado.
A tradição confere um sabor, um calor, uma vida
especial a uma ação de graças certamente muito bonita, muito
justa, mas que perderia alguma coisa se não fosse tão tradicional.
Aprendamos dessa maneira a amar a tradição, e compreender como ela
adorna as coisas de Deus e de Nossa v Senhora.
Plinio Correa de Oliveira
- Extraído de conferência de 22/7/1975
1) Santo Urbano V. 2)
Lamentavelmente, em 1793, a Revolução Francesa causou a completa
destruição da Capela da Santa Cruz. Mais tarde, uma nobre família
promoveu a construção de uma nova capela. Concluída a construção,
o Arcebispo de Avignon restaurou ali a Adoração Perpétua do
Santíssimo Sacramento (Cf. Eucharistic Miracles and Eucharistic
Phenomena in the Lives of Saints, Joan Carroll Cruz, Tan Books and
Publishers, Rockford, Illinois, 1987, p. 144).
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